quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

domingo, 20 de setembro de 2009

Os dentes

É difícil escrever. Nestes dias assim corridos, falta-me inclusive o ar. É difícil, falta-me o ar. Nem a janela aberta. O peito oprime pulso e coração, e daqui o relógio não para, o sangue muito menos, os ônibus estão cada vez mais rápidos. É assustador. Os homens apontam os ônibus, fazem sinal. Há tantos poemas perdidos no espaço. Mas, ainda, é difícil escrever. A figura de um homem, os quatro dentes da frente - sujos, os dentes - formam uma barreira, o muro de Berlim. E neste dia de paz religiosa posso dizer, com toda a liberdade, que é um demônio, um capeta, ah, com os dentes a me atormentar. Mas eu quero. Os braços, os dentes, as unhas e os chifres deste ser das trevas iluminado. O ar, falta-me o ar. Com isso, é difícil que se estabaleça uma conversa normal, humana, inteligente. O homem, chato e depravado; eu, também. É difícil escrever sem ar. Inspira, expira; é um pássaro, um corpo, um avião. O ar.


20.ix.09

domingo, 23 de agosto de 2009

O dia amanhece escuro e cinza

O dia amanhece escuro e cinza.
Gostaria de escrever com a certeza das palavras.
O dia ainda não veio porém esperamos por ele
está escuro e cinza.
As sombras da sala encobrem de penumbra os corpos.
O verde é tão mais verde neste dia
escuro
uma luz escura.
Pronto: chove.
A natureza conversa com o poema
e o poema responde.
O dia amanhece quente e cinza
clareado por gotículas cristais.
São milhares de momentos separados
absolutamente iluminados
resplandece a chuva
verão.


2006/2007

Dom João VI

Passeio pelas ruas da cidade atônita,
vendo os prédios caírem aos meus pés.
Não são prédios são os pés
do mundo que esmagam nossas cabeças.
Mas como é bonito o teatro municipal.
Não canso de me espantar.
Muitas pessoas falam sozinhas enquanto passeiam nas ruas.
O mundo está salvo
os loucos existem
e as árvores também.
A janela do ônibus enquadra a quina de um prédio,
a borda de outro e uma árvore.
Sozinha escrevo melhor porque dói mais.
A igreja continua em obras.
Há duzentos anos veio aqui um homem e disse: civilização.
E assim nós existimos tristes por essas ruas falsificadas.
Não basta termos pés e prédios
não é suficiente.
O importante é estarmos sós
para poder
muito
escrever.


2006/2007

sábado, 8 de agosto de 2009

Sábado

Aquela hora silenciosa do sábado,
quando o dia torna a esquentar para então definitivamente resfriar-se de novo,
são instantes de algum silêncio morno
em que aguardamos o próximo passo do mundo.
O que acontecerá, agora?
Um sábado qualquer,
que são todos os sábados,
sabe dizer o que acontecerá.
É o sábado que se desdobra em sábado que se desdobra em sábado.
São todos os sábados.
Aquela hora silenciosa do sábado,
e já então não mais aquela hora,
mas outra
mas ainda o mesmo sábado
e já outro.
Porque amanhã, pretenso domingo, será sábado
como ontem também o foi.
E de todos os instantes mornos do sábado
sei aquele que mais dói.
É aquela hora silenciosa do sábado, quando o dia torna a esquentar para então definitivamente resfriar-se de novo.


2007

Hospital da Lagoa

O homem que quase perdeu a perna estava no Hospital da Lagoa.
Uma mulher, que não era a sua, estava ao seu lado.
Outro homem, este sim, este perdeu a perna,
era o marido da mulher, e ele sentia ciúmes.
O homem que quase perdeu a perna ganha a vida cortando cabelo. É barbeiro.
Do outro, nada se sabe.
Apenas que sentiu ciúmes de sua mulher quando esta ajudava outro homem,
o que quase perdeu a perna.
Eu, de longe (talvez nem tanto), observo o Hospital da Lagoa.
Nunca entrei no prédio, mas você me ensinou o que é um brise soleil nas armaduras
do Hospital da Lagoa. Você me disse
“são essas paredes móveis, que buscam a melhor posição do sol, a melhor tragada do vento”.
O que um homem que perde a perna e tem ciúmes de sua mulher, sente?
E o que um homem que quase perde a perna sente?
E, sim, o que esta mulher sentiu, quando seu homem perdeu a perna e desejou
– a perna, a mulher.
Era capaz de ainda amar a mulher quando viu a perna indo embora.
Não queria perdê-la.

2009

domingo, 19 de julho de 2009

Na Glória



"Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: 'Quem são?' e um sabido explicava: 'Este é o doutor Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Matacavalos'."

Machado de Assis, Dom Casmurro



Mora-se na Glória
e consegue ser feliz por algum tempo.
Na sua casa, o convite,
entre quitinetes.
A vista não parece estranha,
é até bonito olhar
tantos prédios e pessoas
sozinhas e escondidas.
São duas as paredes horizontais
que modulam a casa.
Na Glória
hoje já não se vê o mar
que há tanto.
Consegue ser feliz por algum tempo.


2008

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Quinta-feira

Alguma coisa incrível poderia acontecer nesta noite de quinta-feira, quando a Praia do Flamengo está repleta, às duas horas da manhã. Algo extraordinário, sem precedentes na história, algo que me fizesse crer.
Alguma coisa, qualquer uma, uma lufada de vento, uma nota de cinquenta reais no chão, ganhar a quina da Mega Sena acumulada. Mas nada. Nada acontece no Rio de Janeiro, na noite de quinta-feira, já às duas horas da manhã.
O relógio, que todos odeiam, não para. Se pelo menos hoje fosse sexta, alguma coisa, com certeza, iria acontecer. Mas não, hoje é quinta, e nada acontece.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Trompete

De tanto mar e tanta terra que existe,
apenas um dos seres sabe
empunhar um objeto dourado flamejante
e dele extrair música e gozo.
Às vezes o objeto sou eu,
às vezes o ser é o Sol.

De tanto mar e tanta terra
e de mim
o ser que sabe
extrair música e gozá-la
é muito também o mar
profundo e azul
e também a própria terra
magma absoluto
guerra
e eu objeto de sopro
sendo corpo
vivo enquanto música soprada.

É a boca do ser
nas minhas bocas.
O gozo do Sol:
prazer.


ii.2008

A primeira angústia

A primeira grande angústia de publicar algo – seja na internet ou em qualquer outro lugar – é a pergunta: “interessa?” Esta é, já, uma discussão ultrapassada. Mas nunca uma angústia. Escrever pra quem, por quem ou pra quê? Mas escrever de dentro do barco – naufragado – é impulsionar um prazer soterrado pelas perguntas.

Escrevo porque o gozo reside aí.


14.vii.2009

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Desanatomia

A anatomia ao contrário
do meu corpo
é estranha.
Sinto que sou de cabeça pra baixo.
Meu coração é peludo
e tenho púbis vermelha.
Ela pulsa.
Ele sangra.


2004

Cidade maravilhosa

Mas que cidade é essa
que passa tão nublada pelo horário de verão?

Perdi o poema.

E eu ando de luto na frente da Candelária
– essa cidade nunca foi linda sem você.


09.i.2007

Bateau Mouche

(Aos gêmeos.)

Eram tardes de um ano impreciso e ensolarado.
Corríamos para ver o mar
que liberava destroços de uma festa que nunca aconteceu.

Naquele tempo, ainda, apenas os barcos afundavam.


2008