segunda-feira, 21 de março de 2022

Lua cheia em Virgem

Cogumelos comestíveis


Uma vez, há quase dez anos, tive uma viagem alucinante de cogumelo. Foi um lance terapêutico. Eu estava na Holanda, comi em casa, deitada na cama, um edredom me cobria. A que visões a viagem me levaria? As revelações têm a função de nos libertar – se a pessoa tiver, é claro, como você gosta de dizer, ancoragem emocional para isso. As revelações têm a função de nos libertar de nós mesmos, de nos livrar das torções que fazemos ao longo da vida, de modo a caber. Como se a gente fosse a vela de um filtro de barro e alguém nos limpasse. Tirasse o lodo. Foi assim que me senti depois da viagem de cogumelo. De início, tive medo e resisti. Na eletricidade, resistência é o dispositivo que se coloca num circuito para criar dificuldade à passagem da corrente elétrica, gerando calor. Tentei controlar a viagem, direcionar meus pensamentos. Só que chega uma hora, a coisa acontece. Primeiro, eu era uma mulher pendurada de cabeça para baixo num poço. Me erguiam e me afundavam num barril de água, num lugar alto e comprido que parecia o fundo do poço. Que merda, acho que pensei. Não comi cogumelo para me torturar. A cena seguinte foi mais aprazível. Eu estava no apartamento da Mariinha, minha avó materna, na Urca, no Rio de Janeiro. A casa vazia, era a luz das três da tarde, raios em diagonal atravessavam a poeira. Andei pelo quarto da frente (onde as crianças costumavam ficar porque tinha a televisão), pela sala, pela cozinha. Vi um hamster dentro de uma gaiola e, lá dentro, um círculo onde ele corria sem sair do lugar. Minha mãe disse que teve um hamster quando era adolescente. Eu vi memórias que não são minhas.

Da janela da cozinha
olhei para o vão interno
do prédio. E de repente
eu estava no espaço
sideral.
E o que senti foi um grande
alívio, seguido de
amor universal.
Jorrava amor do meu peito
e não era sexual.

Saí dessa viagem com um mantra: eu só quero estar presente. Compreendi com o corpo, e até o fundo da alma, com todos os poros da pele, que a vida é um presente. E a palavra “presente” em língua brasileira é o tempo verbal do agora e o substantivo do que se dá a alguém para agradar. Saí dessa viagem dizendo que sou uma sacerdotisa da vida, que estou a serviço da vida. A vida se realiza por meio de nós. A vida é o presente que todos os seres vivos no planeta Terra ganham. E, em troca, devemos agradecer, reconhecendo o que recebemos, retribuindo à vida, a própria vida. Agradecer é, por exemplo, lutar para que pessoas não passem fome. Os seres vivos zelam por suas espécies. As pessoas, na nossa sociedade, predam umas às outras, ao deixar seu semelhante sentir fome. “Semelhante” não é um indicativo de classe, é um indicativo de espécie. Se a alquimia é a química oculta, a vida oculta, qual seria? A alquimia da vida são as vísceras. E é preciso saber cultivá-las.

No último podcast lançado pela Casa de Minerva, a Renata Dias falou sobre a Lua cheia em Virgem. E terminou assim: “que a gente saiba o que fazer com a preciosidade que é estar vivo. Isso é precioso. A gente precisa agradecer a isso todos os dias. Não é uma bobagem, é um presente”.