sexta-feira, 16 de julho de 2010

Salpicão

Salpicão é comida de vó.


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"Compage, macedônia, amálgama, baralhada, fusão, transfusão, matrimônio, salada, salpicada, salsada, salgalhada, tutilimúndi, choldraboldra, junção." Dicionário analógico da língua portuguesa, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. (Todo mundo é capaz de escrever bem, ricamente e com classe se tiver esse dicionário.)


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Horário de saída das escolas, as ruas salpicadas de crianças. Uma menina loura e magra amassa o nariz da professora, ao lado de um cachorro pastor alemão; e um menino preto e magro chora, mãos dadas com a professora. Sempre uma professora. Para aqueles que estudam à tarde meio-dia é quando o dia começa. Bainho tomado, cabelo puxado pra trás, barriga cheia. As ruas salpicadas de uniformes. Escola Municipal Benevenuta Ribeiro, São Bento, Tancredo Neves, Escola Municipal Orsina da Fonseca e Pedro II. Notre Dame, Franco Brasileiro. CIEP Bento Rubião. Colibri. Escola Municipal Tia Ciata e Colégio Rio de Janeiro. Enquanto uns saem outros chegam, e a vida acontece. O trabalho, o almoço, o susto. Descobri que ao lado da igreja Santa Margarida Maria acontece uma feira toda quarta. Boa estreia para meus óculos novos.


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Salpicão também é a casa do Ferreira. Um apartamento em Copacabana, penumbroso, em que tudo é milimetricamente desarrumado. Cada casca de lápis, cada livro e parede. Móbiles. O frango a cenoura a maionese o presunto. Tudo, na casa com Ferreira. Susto de novo, e ainda bem. Entrar naquela casa é mergulhar numa outra dimensão, "numa outra (maior) realidade" (Drummond). Não tem cheiro, não tem som, só tem espaço. Só tem objetos. Só tem cores e planos e alguma luz melodramática. A casa é iluminada por seus objetos. A concretização natural do claro/escuro. A casa de Ferreira é um espaço sideral. E isso me faz lembrar um poema dele que é exatamente como sua casa:


"Pergunta e resposta


Se é fato que
toda massa do sistema
solar (somando a de Saturno e Marte
e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio
e Plutão, mais
os satélites, mais
os asteróides, mais) equivale
apenas a 2% da massa
total do Sol e
que o Sol não é mais
que um mínimo ponto
de luz na estonteante tessitura
de gás e poeira da Via
Láctea e que a Via
Láctea é apenas uma
entre bilhões de galáxias
que à velocidade de 300 mil km por segundo
voam e explodem
na noite
            então pergunto:
            o que faz aí
            meu poema com seu
            inaudível ruído?


            E respondo:
            Inaudível
            para quem esteja
                 na galáxia NGC 5128
            ou na constelação
            de Virgo ou mesmo
                 em Ganimedes
            onde felizmente não estás,
                 Cláudia Ahimsa,
            poeta e musa do planeta Terra."


Ferreira Gullar, Muitas vozes


Abaixo, Na casa, com Ferreira. Foto de Tomás Rangel. 




quinta-feira, 1 de julho de 2010

Tirada decorativa


O tema mais batido do mundo, em termos de escrita, talvez seja o "não escrever". Escrever sobre a crise do "não escrever", do "não conseguir escrever". Deve haver vários motivos que levam alguém a não escrever, mas listo os quatro primeiros que me vêm à cabeça: falta de vontade, falta de talento, falta de técnica, falta de tempo. O Bateau Mouche está no ar há um ano. Houve momentos em que meu distanciamento em relação a ele foi proposital, não escrevo por falta de vontade. (Então por que criou o blog?, eu mesma me perguntei.) Passada a falta de vontade - muitas vezes motivada, é necessário dizer, pela falta de talento e de técnica - resolvi aderir ao Bateau, outra forma de aderir a mim mesma. E me deparo com a quarta e mais crônica das faltas atuais, a de tempo. E me pergunto - o tempo nunca falta nas perguntas - como eu antes dos 30 anos posso experimentar o estado falta de tempo? De fato é cotidiano, a mais aterrorizante das palavras: chegar em casa do trabalho, depois das nove da noite; comer pouco; banho; vestir pijama; computador. Nisso, quede fôlego? O dia começou cedo, com a ginástica-faca-apontada-pro-pescoço (uma vez por semana). Depois vem o imenso dia de trabalho (salve salve Cesare Pavese). E não é justo esquecer dos trajetos: casa-rua-ônibus-trabalho-rua-ônibus-casa. Com tudo hoje já é dia primeiro de julho, faço questão de escrever por extenso, como se eu tivesse todo o tempo do mundo. As mulheres do século XIX tinham mais tempo. E o meu quarto se torna um maravilhoso parque de diversões, com morros de livros que ainda não li (desisti da música). E o computador é a terceira dimensão, com o mundo por trás da janela, e a possibilidade infinita de escrever escrever escrever. Mas, putz, são todas possibilidades ficcionais. Talvez depois desse texto eu deva pagar uma sessão pro suposto leitor; talvez eu mesma deva me pagar uma sessão. Quite. O blog é pra quem gosta de aparecer, e minha personalidade molha aí sua torrada. Texto brega, texto negativo, texto autoanálise, texto não texto. Texto.