domingo, 26 de dezembro de 2021

Alimentar o encantamento que o ser humano não pode perder

 

Vania Rosa
Foto: Pedro Murad


A cada último domingo do mês, Vania Rosa (@vaniamarosa) e Evelyn Feitoza (@evelynfeitoza) coordenam uma ação que acontece no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, onde são oferecidos a pessoas em situação de rua atendimento médico e dentário, atendimento veterinário, alimentação, banho, roupas, cortes de cabelo. Eu participo com a #teia. Recolho roupas para doação e colaboro na entrega para as pessoas. A última ação do ano de 2021 aconteceu no dia 19 de dezembro. Houve também pula-pula para as crianças, e a presença do Papai Noel.
 
Pessoas em situação de rua estão vivendo em extrema vulnerabilidade. No Brasil, somos testemunhas do crescimento atroz da fome, pessoas sem trabalho, sem casa. O que podemos fazer para reverter essa situação? O primeiro passo você sabe qual é, e ele irá acontecer nas próximas eleições, quando votaremos no Lula para presidente. A par disso, Vania Rosa dedica sua vida a combater injustiças, desigualdades, crueldades sociais. E na segunda-feira, dia 20, trocamos algumas mensagens e ela me contou: “O Papai Noel chorou, ao trocar de roupa. Ontem tinha algo a mais, que eu não sei definir em palavras. É por isso que estou o dia inteiro assim, mexida”. Vania é uma mulher miúda, mas a energia que ela carrega e transmite é gigantesca.
 
“Estou com uma sensação de missão cumprida, de paz interior. Contribuir para o brilho no olhar das pessoas. Das crianças, das mães. Estou sentindo alegria, satisfação e alívio por terminar a ação dentro dos conformes”, ela falou. “Quase não teve tumulto, diferente de outras vezes, quando houve situações bem críticas. Estavam todos tranquilos. Fechamos com chave de ouro. Mais um dos milagres que temos feito durante todo o ano. Foi lindo. Muitos se emocionaram. Os voluntários, os parceiros de sempre que estavam ali, e algumas pessoas que passavam na rua, transitando. Eu sempre vi o engajamento de cada um de vocês, sempre vi ânimo. Gratidão pelo apoio de vocês, por estarem comigo. Porque sem vocês não seria possível. Mas, ontem teve algo diferente, maior”.
 
“Sou a oitava filha de uma família de nove. Quando criança, a imagem que eu tenho do Natal é sempre um dia chuvoso. A gente morava num quintal com outras três famílias. Éramos bem pobres. Havia muitas crianças no quintal. À noite, na hora da ceia, a gente não tinha. Era a comida de um dia normal. Eu brincava com um barquinho de folha de caderno, que minha mãe fazia. Amarrava uma linha onde seria o mastro, naquele barquinho de papel. Eu ficava na janela, chovia, a goteira do telhado caía na beira da parede, e fazia uma vala pequenininha. Aquela aguinha passava, e o barquinho ia, eu puxava. E a gente via aquele momento passar. Não tinha presente. Mas a gente sabia o dia do Papai Noel. Era um lugar pobre, no interior de Vilar dos Teles, roça mesmo. Mas alguns vizinhos tinham condições melhores, e a gente via as crianças que ganhavam presente e comiam rabanada na rua, brincando. E aquela história do sapatinho na janela. Eu gostava de sonhar com o Papai Noel”.
 
“E, na ação, o Papai Noel realizou o meu desejo. Porque eu queria que as crianças acreditassem nele, como eu acredito até hoje. Acho que esse é o maior sentimento que está em mim. Eu ver as crianças encantadas. E ver as mães, que estão com o pé no chão, vivenciando aquilo com seus filhos. Estou tomada pela alegria de ter participado desse momento na vida dessas pessoas. Talvez, elas não esperassem muito, tão desanimadas, tão desiludidas com a injustiça que acontece com elas. Mas ao ver seus filhos vivendo um sonho que, com o sofrimento, elas já perderam, acho que elas sonharam também. Conseguimos levar para eles a mensagem mais importante: deixar eles encantados. Alimentar o encantamento que o ser humano não pode perder”.
 
A presença de Vania no mundo alimenta o nosso encantamento. Comunhão é a realização de algo em comum. Uma sintonia de sentimentos, de modo de pensar, agir ou sentir, ligação. Em meio a triste e cruel realidade que vivemos, sinto que o que aconteceu no domingo foi bonito porque foi uma comunhão. O âmago do sentimento religioso, que tem a ver com essa sensação de estarmos ligados. A religião é aquilo que nos liga, ou, melhor dizendo, que nos devolve a possibilidade da ligação. Nos liga. A quê? Não sei. Sinto. Sentimos todos que estavam no Largo da Carioca na manhã do dia 19 de dezembro.