quinta-feira, 25 de março de 2021

Um poema para Mário de Andrade, infelizmente*

Re-Antropofagia, 2018, Denilson Baniwa




Demilson Ovelar Mendes, 21 anos, não estava bebendo no bar,
embora não lhe faltassem motivos para beber.
Encostado ao balcão, está pálido, magro, as muletas ao lado.
Dois homens se aproximam, um adolescente e um adulto.
De supetão, discutem com Demilson, que é Avá-guarani.
Vivia na terra indígena Tekoha Guasu Guavirá. Terra roxa, boa para o plantio.
Os Avá-guarani têm suas aldeias destruídas desde a Guerra do Paraguai,
e antes,
passando pela construção da usina de Itaipu.
Quando o Dudu namorava a Flavinha,
e fomos visitar sua família em Foz do Iguaçu,
conhecemos a usina de Itaipu. Isso foi em 2014,
cinco anos antes de Demilson ser morto com uma pedrada em Guaíra, no oeste do Paraná.
A assessoria da Polícia Civil informa que o assassino
teria se vingado de Demilson pelo suposto furto de um narguilé.
A covardia da declaração
reafirma a atrocidade da cena.
Arrastar Demilson, que tinha dificuldades para andar,
por um quilômetro até a próxima plantação de soja.
Buscar uma pedra, uma pedra grande,
encontrá-la, erguê-la com os dois braços
e jogá-la na cabeça do homem imobilizado,
o cabelo escorrendo nos olhos.
Na escuridão ativa da noite,
a crueldade matou Demilson. E dá mesmo um frio por dentro
lembrar que esse homem é brasileiro que nem eu
e morreu, sem poder se defender,
com uma única pedrada na cabeça,
tamanha a violência do golpe.


*A partir da reportagem “Morto a pedrada: racismo, ódio e crueldade marcam assassinato de indígena no Paraná”, de Diego Junqueira, site Repórter Brasil, e do poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade, publicado no livro Clã do jabuti:

"Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu..."