domingo, 17 de abril de 2022

Lua Cheia em Libra

Meus irmãos e eu sobre o nosso pai na casa onde moramos no Recreio dos Bandeirantes. Uma galinha e seus pintinhos, era assim que ele gostava de viver. O registro certamente é da minha mãe, que adora tirar fotografias.

Eu, minha mãe, meu pai e meus irmãos viajamos muitas vezes de carro, na maioria rumo ao sul, cruzando a Dutra, passando por São Paulo. Invariavelmente, parávamos na cidade de Resende, numa lanchonete para comer misto-quente e tomar leite batido com Ovomaltine. Lembro bem do gosto e da textura do sanduíche e do chocolate. O queijo torradinho da borda, a gordura do presunto, os cristais achocolatados da bebida. Meu pai ficava orgulhoso de nós, da nossa vida familiar. Ele gostava especialmente de situações como essa, a do misto-quente com Ovomaltine, e assim construía nossa tradição. Todos têm suas singelas e íntimas tradições familiares. Meu pai e minha mãe foram capazes de criar algumas entre nós. Ao ir e voltar de São Paulo, cortando e sendo cortada pela Dutra, minha família reaparece, nas nossas paradas em Resende para tomar Ovomaltine.

No início da década de 1990, meu pai trabalhava em São Paulo e nós morávamos no Rio de Janeiro, no Grajaú, no mesmo bairro onde estou hoje, trinta anos depois. Eram melancólicos os finais das tardes de domingo. Ou deixávamos meu pai em algum local onde pegava carona com amigos (tenho viva na memória a Praça dos Cavalinhos, na Tijuca), ou ele se despedia de nós e descia a rua Botucatu até a garagem da Estação Cometa, na Maxwell (onde hoje é o supermercado Guanabara). Uma vez fomos todos a São Paulo para ir ao Playcenter. Meu pai alugava um apartamento no Itaim Bibi, não muito longe do Parque Ibirapuera. No Natal de 1991, eu tinha oito anos, viajamos juntos para São Paulo, só nós dois. Desde pequena, meu pai teve o hábito de viajar sozinho comigo. Com três meses, nós morávamos em Maceió, eu nasci lá, ele me trouxe para o Rio de Janeiro, para me apresentar aos avôs. Nessa viagem que fizemos juntos a São Paulo visitamos a loja Mappin e compramos meu Banco Imobiliário que, aliás, tenho até hoje. Embrulhado em papel de presente verde-garrafa com o nome Mappin escrito em letras brancas, numa caligrafia cursiva. A loja Mappin fechou suas portas em julho de 1999, mesmo ano em que morreu João Cabral de Melo Neto. Em 1999, às vésperas do século XXI, eu cursava o segundo ano do Ensino Médio. Acho que foi aí que resolvi estudar Letras.

Eu e meu pai fomos algumas vezes à Bienal do Livro, no Riocentro, e quando meus irmãos nasceram e eu era pequena, ganhei uma coleção de livros com fita-cassete da Disney, que ele trazia do centro da cidade, onde trabalhava. Percebi outro dia que a literatura e os livros foram uma espécie de mediadores na nossa relação. Ele escrevia muito bem, mas não é que meu pai tenha sido um grande leitor. Já adulta, depois de uma briga em que contei do aborto que fiz ainda jovem, sem que ele e minha mãe soubessem, me reaproximei ao deixar o poema “História natural”, de Carlos Drummond de Andrade, sobre a sua escrivaninha:

“Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no voo.
O mundo não é o que pensamos.”

Na faculdade, numa fase em que eu produzia livrinhos em casa e vendia, ele levou alguns para a fábrica da Bayer, no município de Belford Roxo, onde trabalhava (ele era engenheiro químico), e quando questionado sobre meus poemas, respondeu: “minha filha é uma poetisa erótica”. Meu pai achava graça no piche que havia na placa de entrada da Faculdade de Letras: “e palavras”. No dia em que eu e ele fomos fazer minha inscrição na Ilha do Fundão, no início de 2001, quando abri a pasta de documentos na secretaria, eles haviam sumido. Minha identidade, meu CPF, o histórico escolar, escaparam da pasta por uma fresta, e não sei qual foi o milagre que nos fez encontrar todos os documentos na grama, pelo caminho. Meu pai chorou.

Ele morreu no dia 13 de julho de 2016, às três e meia da tarde. Outro dia achei uma anotação que fiz em novembro de 2015, poucos meses depois de termos descoberto o câncer do papai. O câncer do papai é quase obsceno, mas vou deixar. Àquela altura, ele envelhecia muito rápido. Seu bigode grisalho estava quase branco. “Sempre me comovo com a imagem do meu pai, embora, talvez, ele nem saiba disso”, eu escrevi há sete anos. “Meu pai está mais velho. Mais magro, mais velho. Hoje olhei para seu rosto e vi duas pequenas bolsas crescendo abaixo dos olhos. As pernas magras do meu pai me comovem profundamente. Acho tão engraçado quando ele usa meia soquete branca com sapato. Ele me lembra uma criança”. E aí contei um sonho. “Nesta semana, sonhei que havia morrido e meu sentimento era de muita pena pelas coisas que eu gostaria de ter feito e não fiz. No sonho eu não sei como morri. Isso não importava. Era como se a morte fosse a mais natural das nossas ações. A menos dolorosa. De um momento para o outro, eu sabia que estava morta. Não houve violência, não houve dor. A morte foi a continuidade de uma ação perpétua. A dor veio depois da morte. Era como se eu conversasse comigo mesma, e me dissesse da pena de ter morrido sem ter feito tantas coisas que tinha vontade”. 

Desde que soubemos do câncer até sua morte, meu pai viveu dez meses. Durante a doença, tive a ilusão de que ele poderia se tornar menos tenso e controlador. Mas isso não aconteceu. Ele não queria morrer de jeito nenhum, e ficou puto de ter ido tão cedo. Em 2018, era setembro ou outubro, eu morava em Paris por causa da bolsa sanduíche, no quarto 410 da Maison do Brasil, e sonhei com meu pai. Ele aparecia com os cabelos maiores, uma mecha branca que começava na testa. Passei a mão sobre sua cabeça e comentei que seus cabelos estavam compridos, e eu gostava daquele visual. Ele respondeu, com uma expressão meio contrariada, “é, aqui eles não ligam para essas coisas”. Fiquei com a sensação de que meu pai estava um pouco mais conformado com a morte. Um anjo da guarda o acompanhava, um homem jovem com feições indígenas vestido com uma roupa toda preta, um conjunto esportivo.

Estive junto do meu pai nas suas últimas horas de vida. Ele não morreu em casa, como morriam os reis em seus palácios. Bem que ele teria gostado. Bem que ele merecia, mas morreu num leito duro, na baia de uma emergência. No dia da sua morte, eu e minha mãe chegamos ao Rio de Janeiro às seis da manhã, e fomos para o hospital Copa D’Or. Eu vestia um macacão longo e folgado de jérsei colorido sobre fundo preto e o casaco esporte branco e verde da Puma que era do papai, e que herdei. Lembro dele de fralda, muito magro, e da expressão de dor em seu rosto, de desespero, num ímpeto de lucidez, ao ver entrar na baia o médico que o tratava. Estávamos eu, mamãe e um dos meus irmãos. O doutor pediu para falar conosco em particular e nos disse que não havia mais nada a fazer, como se isso já não fosse óbvio o bastante. Lembro do papai ter falado “Carol”. Ele teve alguns lampejos de consciência, mas na maior parte do tempo estava inconsciente. Ou de dor, ou de morfina.

Houve um momento em que saí e quando voltei ele estava banhado de suor. Foi uma cena terrível. Papai de fralda, todo suado, inconsciente e, ao mesmo tempo, gemendo de dor. De repente, como um anjo, uma das minhas melhores amigas apareceu. Ela é pediatra e conhecia o médico que estava no comando da emergência. Estávamos eu, mamãe, o meu irmão e essa amiga ao redor do leito. Eu e meu irmão segurávamos, cada um, uma mão do papai, e a mamãe estava a seus pés. Minha amiga, mais afastada, observava. Todos nós chorávamos porque sabíamos que o fim se aproximava. Ele sofria horrivelmente. O chefe da emergência aumentou a dose de morfina e, logo depois, meu pai morreu. Demoramos uns segundos para entender o que havia acontecido. Chamamos alguém, uma enfermeira entrou e nos confirmou sua morte. Em seguida, passei pelo saguão do hospital, abracei algumas pessoas, e fui à casa dos meus pais, em Copacabana, buscar documentos e um traje para vesti-lo. No caminho, cruzei com uma aluna. Ela me olhou e perguntou se estava tudo bem. Eu respondi “meu pai acabou de morrer”, e chorei. Em casa, escolhi uma camisa de linho que eu lhe dera de presente no Natal de 2013. Ela era listrada em dois tons de azul, um claro e outro escuro. Calça e sapatos pretos. Mas não sei se essa foi de fato a roupa que, por fim, ele foi cremado.

Quando voltei para o hospital, meu marido estava lá. Eu quis vestir o meu pai, e ele foi comigo. O corpo do papai estava na mesma baia, coberto, uma faixa branca envolvia sua cabeça, do topo ao maxilar, prendendo a boca. Suas mãos e pés estavam amarrados. Foi uma cena comovente. Eu, meu marido e uma enfermeira que nos ajudou, chorávamos, emocionados. É difícil vestir um cadáver. É impressionante a velocidade com que o corpo enrijece. Eu levei até cuecas e meias, e colocamos todas as peças, uma a uma, com dificuldade. Parecia que ele já tinha diminuído. Tive vontade de pegá-lo no colo e levá-lo para casa. Meu pai dizia que empalharia nosso cachorro depois que o bicho morresse. E foi essa a minha vontade com seu corpo. Eu queria levá-lo para casa e conservá-lo. Alguns meses depois da sua morte, li que em algumas sociedades, durante o período de luto, as viúvas cozinham o arroz com a água liberada pelos cadáveres dos maridos, e isso fez todo sentido para mim. Simplesmente, ele parecia frágil como um recém-nascido. Mas, ao invés de poder cuidar dele, de cobri-lo e alimentá-lo, nós o vestíamos para a morte.