quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

"O antipássaro"

Orides Fontela,
fotografia de Inês Guerreiro

No sábado passado o Chico nos convidou e fomos assistir à peça “O antipássaro” no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, em que o ator Nilton Bicudo, dirigido por Elias Andreato, encena a vida e a obra da poeta Orides Fontela. Paulista nascida em 21 de abril de 1940 em São João da Boa Vista, cidade na divisa com Minas Gerais, Orides morreu aos 58 anos. Eu já conhecia a poesia de Orides, mas não sabia quase nada de sua biografia. No palco, o cenário é econômico. Luzes azuladas dão o tom. Uma penteadeira, uma cadeira, um lenço pendurado, um copo d’água, uma vela acesa e um tapete vermelho, ao mesmo tempo sangue e passarela, onde o ator desfila a força, a beleza e a angústia da poesia de Orides.

Registro do espetáculo "O antipássaro" feito por mim

O espelho é personagem coadjuvante no monólogo, objeto para o qual a poeta e o ator constantemente se voltam. As luzes se acendem e desde o primeiro momento os poemas são encenados com intensidade. A princípio, senti estranheza ao ouvir o texto com tal vigor. As palavras são ditas como pedras que se chocam quando buscamos o fogo. Porém, à medida que a peça avança – o roteiro foi escrito a partir de poemas de Orides, suas entrevistas e relatos do ator – fica compreensível a escolha pela interpretação pujante. A mulher que emerge ali é lúcida, solitária, furiosa, passional. É emocionante estar diante de alguém que fez da escrita a sua vida. Não o ofício, mas a vida. Orides Fontela se submeteu à força da poesia e do escrever. Uma pessoa com temperamento extravagante, por vezes perturbado, mas de extrema lucidez e coragem. Enquanto a peça transcorria eu pensei “ela foi uma sacerdotisa da poesia”. Nos dias que se seguiram, reli seus poemas. Sua voz chega como um recado espiritual. De tão simples, é essencial: “Nunca amar/ o que não/ vibra// nunca crer/ no que não/ canta.”.

Nilton Bicudo na peça "O antipássaro"

O figurino da peça tem um conceito interessante. Nilton Bicudo veste saia preta sobre calça de risca de giz e camisa de flanela vermelha sobre camiseta preta. Como adereço, um singelo colar com uma cruz de madeira. É necessário tencionar a dicotomia masculino-feminino, já que se trata de um homem encenando uma mulher (e Nilton vai e volta nos personagens em cena, é Orides quem fala a maior parte do tempo, mas ele também aparece quando nos conta sobre sua relação com a poeta). É boa, então, a ideia de sobrepor a saia à calça, uma peça unívoca sobre uma forma bifurcada, misturando trajes secularmente associados aos gêneros feminino e masculino. Mas a camisa de flanela vermelha me pareceu gratuita e a saia muito moderna. O conceito do figurino é bom, mas a realização, menos. No espetáculo fica evidente a pesquisa do ator e do diretor sobre os gestos, a voz e a maneira de falar, a materialidade da passagem de Orides pelo mundo. Justamente por isso, havia melhores opções para o figurino. Há fotos e vídeos de Orides Fontela e numa dessas aparições lá está ela com uma camisa de manga comprida de veludo preto com os punhos ajustados. Vale a pena ver “O antipássaro”, em cartaz até 3 de março, e conhecer a poesia de Orides Fontela.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Padre Cícero

 

A estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte

Esse foi um ano para lá de bom. Lancei meu primeiro livro e divulgando O guarda-roupa modernista viajei para Belo Horizonte, Buenos Aires, Itu, Poços de Caldas, São Paulo, Rosario. Fiz amigos por causa do livro. Conheci um monte de gente maravilhosa, um monte de livrarias lindas também. Vivi um turbilhão-delícia. Dei entrevista, aula, curso, palestra, participei de feira literária, mesa redonda, podcast. Escrevi artigo de jornal, ensaio, texto para a Lua, ficção, quase não escrevo mais poemas. Me mudei para São Paulo, comecei a correr. No início de dezembro, tive a sorte de ir ao Cariri. A estátua de Padre Cícero na Colina do Horto, em Juazeiro do Norte, no Ceará, é um lugar muito forte. Tem 30 metros de altura e foi inaugurada em 1º de novembro de 1969. Dei três voltas no cajado do Padim e fiz um pedido. Agradeci, rezei por saúde e proteção para nós. Da estátua, aos pés do Padim Ciço, vemos os contornos sensuais da Chapada do Araripe. A paisagem e o horizonte espiritual ficam repletos dessa mistura que me pareceu tão típica do Cariri, de fé, beleza, amor, dor, milagre, choro, carne, salvação. Ter fé é entregar e confiar. É se aproximar de quem nós somos, com a franqueza e a coragem que esse gesto necessita. Me tornei devota do Padim Ciço e estou certa de que ele, minhas santas e meus santos, meus guias espirituais, meus ancestrais e aqueles que virão depois de mim conduzem minha vida no caminho do bem, do amor e da saúde. No sertão brasileiro as pessoas têm fé. E ter fé é uma das coisas mais bonitas que pode acontecer ao ser humano. Agradeço todos os dias que vivi em 2022, as alegrias e as dificuldades. Agradeço meu corpo, minha saúde e minha inteligência porque sei que estar viva é uma dádiva. Obrigada, Oyá, minha mãe Iansã, é você a maior homenageada na minha existência porque é você que acontece na medida em que eu sou.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

36 anos dos gêmeos

Nós cinco em Foz do Iguaçu

Meus irmãos gêmeos fazem aniversário dia 15 de dezembro. Sou a mais velha, e aqui em casa não tem irmão do meio. Eles nasceram em 1986, eu tinha três anos. Existe uma foto que sou eu na maternidade, entre os dois. Meus pais contam que deitei entre eles, quando os vi. Acho que esse ano foi o primeiro aniversário dos meus irmãos que passo longe dos dois. No dia 15 de dezembro, pelo menos com um eu estou. Foi um pouco triste estar longe deles, e da minha mãe. A gente tem o costume de passar o dia juntos, fazendo alguma coisa que eles gostam, normalmente, cachoeira e/ou praia. Ao contrário do que experimentamos esse ano, nessa foto, em 2014, estávamos os cinco juntos em Foz do Iguaçu. É uma imagem bonita, afetuosa. Papai, para variar, aparece de olhos fechados. Ao observar a foto agora, seis anos depois da sua morte, seus olhos fechados meu causam estranhamento, como se o fantasma se projetasse ali. Um fantasma sorridente. Ele estava feliz, estávamos todos bem nesse momento. Nossos braços acompanham as formas da montanha. Pepê está com o braço por cima do ombro da mamãe, eu estou com o braço por cima do ombro do papai, que está com o braço por cima do ombro do Dudu. Vemos as duas mãos do Pepê, a minha mão esquerda, com unhas pintadas de esmalte preto, e a esquerda do papai, aquela mão miúda dele, com a aliança grossa no dedo e relógio no punho. Três pares de olhos pequenos, um par de olhos fechados e mamãe, charmosa, de óculos escuros. Ela é a única que está com esse acessório, que me parece adequado à luminosidade da foto. Eu também gosto da nossa paleta de cores. Pepê, como em muitas ocasiões, veste camisa do Fluminense, e o verde do tricolor vai bem sobre a mata. Meus pais e eu usamos tons de azul, equilibrados entre as listras do Pepê e o quadriculado do Dudu. Mamãe e eu, cada qual com as suas flores. “Adoro fotos amadoras, fotos de família”, ele disse. Quem fez o registro? Deve ter sido a Flavinha. Os aniversários marcam ciclos na vida, imprimem o ritmo do ano. É uma oportunidade para renovar votos de amor e amizade. Votos fraternais. Desejo que vivam muito e com muita saúde, cheios de amor para dar, com o coração em paz e o sangue nos olhos.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Lua cheia em Escorpião


Me desculpe se um dia lhe causei algum mal.
Os pratos ainda estão na mesa, mas você já está fora de perigo. As coisas acontecem
de uma hora pra outra. Em tal território rubro e negro, a fonte da vida é abissal.
A porta da geladeira revela toda a intensidade da minha intimidade, requer
menos força ao fechá-la. (Trovão.) Há mais de mil pessoas dentro de mim,
sinto dores que não são minhas, e vivo mais uma sexta-feira sozinha. Você
é um conjunto de cenas fortuitas e duas conversas, além de uma foto que roubei
da internet. Não sou capaz de saber se escrevo prosa ou poesia. Sei que é necessário
escrever. Depósito de coisas inúteis.

O sintoma dói na carne. Marte na água é o fazer das sutilezas. Seja mais suave
com seu corpo, acabei de sentir alguém me dizer. A agulha de metal que pica
a veia é o túnel por onde entra um tubo fino de material maleável, e é esse tubinho
afiado e leitoso que fica dentro da nossa carne. Depois de tirado o acesso, como dizem
no hospital, o tubo fino pingando sangue lembra o dente perigoso de uma criatura
faminta. Poderia ser o dente do meu sintoma. Digo meu, mas por ele não tenho apego.
Apenas me tornei mais consciente da sua força, e da minha. Dois corpos duros
e uma chacoalhada de mãos ao sair.

Quando estava no hospital, fui despertada às seis da manhã pela lembrança
do abacaxi que eu comprara na feira. Os vizinhos vivem comendo pipoca
e a única coisa que eu peço é que você faça pipoca pra mim. Não é todo dia
que se ama alguém de pele lápis-lazúli. O tempo passa ferozmente.
Nos conhecemos desde o século X, vai-las lavar alva. Você é um estranho
e vive debaixo d’água. Sob a luz de Mar del Plata, é da tragédia o seu território.
Quando eu era pequena e ia à praia, adorava brincar que minha casa
era dentro do mar. Talvez eu já estivesse à sua espera.

Tristemente, caminho com os pés na areia da praia de Copacabana.
Às sextas, meu avô gostava de pedir pizza do Caravelle, a massa alta e fofa,
um pouco aerada. O dia foi todo cinza e chuvoso, mas isso não é um problema.
Fui convocada, não posso abrir mão de mim. Que grande liberdade amar
as fragilidades de alguém. Vou comer o purê de batata roxa, que tem a cor mais linda
do mundo. Queria que o universo fosse dessa cor, eu disse. Você é dessa cor,
foi sua resposta. Aguardo sua mensagem, a mais despretensiosa. Oi, tudo bem,
tem se alimentado direitinho? Apenas uma forma de contato que não seja sutil
como nossos pensamentos.

Abro o livro
As impurezas do branco e lá está uma flor seca, guardada não sei quando.
Tenho o hábito de me mandar mensagens de outros tempos. Guardo flores
de dias especiais dentro de livros, perco fotos, esqueço cartões, tudo dentro de livro.
Me escrevo bilhetes que são lidos anos depois. Encontrei anotações em que reproduzo
um dos nossos diálogos. (Com você, aprendo a amar em silêncio, vai-las lavar alva.)
Pedimos uma dose de cachaça para os dois e bebemos devagar, encostados
cada um de um lado da porta grande e antiga do bar. Todo dia, antes de dormir,
penso em você, eu falei. Desde quando, você perguntou.

O prédio da Central
é do tamanho
do meu desejo
Avanço sobre o asfalto
dentro do carro
na minha direção
O meu desejo por você
faz eu me aproximar
de mim

Faço compras e odeio como qualquer outra pessoa. Queria escrever um livro
de autoajuda, mas só consigo pensar num livro de péssima-ajuda, embora acredite
que algumas práticas nos trazem bem-estar e conforto à existência, todas elas
mínimas, insignificantes, ridículas e até escatológicas. Por exemplo, não me obrigo
a tomar banho e escovar os dentes. Para mim, ver os potes de vidro organizados
é uma mensagem de otimismo. Campo magnético, esse é o título do seu primeiro
livro. Estranhamente, me sinto amada. Toda matéria, mesmo aquela não alcançada
por nossa sensibilidade, é ativa. Nem toda matéria é visível. Em épocas remotas,
o campo magnético foi enormemente mais intenso e constante, o tempo suficiente
para incubar vida.

Hoje, enquanto falava sozinha no banho, lembrei que gostávamos de conversar
no chuveiro. Tenho vontade de gritar, tenho vontade de socar os ladrilhos azuis
do boxe. De escovar os dentes até sangrar a gengiva. Hoje, no banho, imaginei
o teto caindo sobre a minha cabeça. Uma música triste desenhava os contornos
daquela casa. O som da música desfia veneno, daqueles que imobilizam
enquanto o mundo não deixa de acontecer. Tudo bem eu ser do jeito que eu sou.
Por quê, às vezes me pergunto, apesar de saber que temos razão. Pego o copo
com as duas mãos e não deixo cair. Os pratos ainda estão na mesa, mas você
já está fora de perigo.

Não é o meu corpo que você manipula. Uso óleo de gergelim, fico com cheiro de grão.
A pele é uma boca enorme. Acordei com a perna dormente, em cima da sua.
Tomei um café coado chamado Baby Flower e peguei o ônibus embriagada,
na avenida Primeiro de Março. Gostaria de dedicar minha vida a combater a pobreza,
material e de espírito. A culpa é um investimento do ego. Todos os sentimentos são
investimentos do ego. O que a vida quer de mim? Qual o chamado da minha alma?
Chove torrencialmente. Eu quero intuição, eu quero calma, eu quero força de vontade,
eu quero lucidez, eu quero discernimento, eu quero paz, eu quero amor no coração.

Sempre gostei de procurar palavras no dicionário. Quando criança, tinha o hábito
de levar café na cama para meus pais. Esquentava o leite da minha mãe
no micro-ondas, já misturado com o achocolatado sem açúcar que ela gostava.
A beleza das flores é indiferente à senhora que passa do outro lado da rua,
empurrada numa cadeira de rodas. Sinto beleza na dor, você me fez escrever.
A palavra é uma roupa, eu disse ao final do nosso passeio. Por duas vezes
fui à praia sozinha. No primeiro dia de viagem, estava frio e ventava, a paisagem
era linda e decadente. No outro dia, à noite. A sensação do futuro rompendo
o presente.

São seis e meia da tarde e parece que o mundo marca três mil e setecentas horas
da noite. Gosto quando venta. Não adianta falar aqui do desejo de estar com você,
do tesão. E mais ainda: da curiosidade. Na alta madrugada assumo a vontade
que eu sinto de engolir um homem. Sabe-se lá os porquês das nossas vidas
em conjunto, se é que ele existe. Estou diante da cratera que me constitui e desejo
todos os poros do seu ser. Gosto de roçar minha língua nos seus pelos.
Por que escrever poemas sentimentais em que se fala do amor e do vazio? 

Os pratos ainda estão na mesa, mas você já está fora de perigo. Eu faço e trago
a sua língua junto da minha. São seis e meia da tarde, talvez valha a pena esperar.
O amor da minha vida agora. Fui dormir com os pés da sua casa, madeira que deseja.
Agora só quero estar com você, falar e beijar ao mesmo tempo. A cama nos chãos
de madeira que me chamam. Desenhos e fotos e tudo o mais enquanto cabe
um dedo seu. Parece que foi ontem, e foi, que o mundo guardava um segredo.
Você é tudo o que existe soterrado em mim, vulcão o nosso corpo.







 


domingo, 17 de abril de 2022

Lua Cheia em Libra

Meus irmãos e eu sobre o nosso pai na casa onde moramos no Recreio dos Bandeirantes. Uma galinha e seus pintinhos, era assim que ele gostava de viver. O registro certamente é da minha mãe, que adora tirar fotografias.

Eu, minha mãe, meu pai e meus irmãos viajamos muitas vezes de carro, na maioria rumo ao sul, cruzando a Dutra, passando por São Paulo. Invariavelmente, parávamos na cidade de Resende, numa lanchonete para comer misto-quente e tomar leite batido com Ovomaltine. Lembro bem do gosto e da textura do sanduíche e do chocolate. O queijo torradinho da borda, a gordura do presunto, os cristais achocolatados da bebida. Meu pai ficava orgulhoso de nós, da nossa vida familiar. Ele gostava especialmente de situações como essa, a do misto-quente com Ovomaltine, e assim construía nossa tradição. Todos têm suas singelas e íntimas tradições familiares. Meu pai e minha mãe foram capazes de criar algumas entre nós. Ao ir e voltar de São Paulo, cortando e sendo cortada pela Dutra, minha família reaparece, nas nossas paradas em Resende para tomar Ovomaltine.

No início da década de 1990, meu pai trabalhava em São Paulo e nós morávamos no Rio de Janeiro, no Grajaú, no mesmo bairro onde estou hoje, trinta anos depois. Eram melancólicos os finais das tardes de domingo. Ou deixávamos meu pai em algum local onde pegava carona com amigos (tenho viva na memória a Praça dos Cavalinhos, na Tijuca), ou ele se despedia de nós e descia a rua Botucatu até a garagem da Estação Cometa, na Maxwell (onde hoje é o supermercado Guanabara). Uma vez fomos todos a São Paulo para ir ao Playcenter. Meu pai alugava um apartamento no Itaim Bibi, não muito longe do Parque Ibirapuera. No Natal de 1991, eu tinha oito anos, viajamos juntos para São Paulo, só nós dois. Desde pequena, meu pai teve o hábito de viajar sozinho comigo. Com três meses, nós morávamos em Maceió, eu nasci lá, ele me trouxe para o Rio de Janeiro, para me apresentar aos avôs. Nessa viagem que fizemos juntos a São Paulo visitamos a loja Mappin e compramos meu Banco Imobiliário que, aliás, tenho até hoje. Embrulhado em papel de presente verde-garrafa com o nome Mappin escrito em letras brancas, numa caligrafia cursiva. A loja Mappin fechou suas portas em julho de 1999, mesmo ano em que morreu João Cabral de Melo Neto. Em 1999, às vésperas do século XXI, eu cursava o segundo ano do Ensino Médio. Acho que foi aí que resolvi estudar Letras.

Eu e meu pai fomos algumas vezes à Bienal do Livro, no Riocentro, e quando meus irmãos nasceram e eu era pequena, ganhei uma coleção de livros com fita-cassete da Disney, que ele trazia do centro da cidade, onde trabalhava. Percebi outro dia que a literatura e os livros foram uma espécie de mediadores na nossa relação. Ele escrevia muito bem, mas não é que meu pai tenha sido um grande leitor. Já adulta, depois de uma briga em que contei do aborto que fiz ainda jovem, sem que ele e minha mãe soubessem, me reaproximei ao deixar o poema “História natural”, de Carlos Drummond de Andrade, sobre a sua escrivaninha:

“Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no voo.
O mundo não é o que pensamos.”

Na faculdade, numa fase em que eu produzia livrinhos em casa e vendia, ele levou alguns para a fábrica da Bayer, no município de Belford Roxo, onde trabalhava (ele era engenheiro químico), e quando questionado sobre meus poemas, respondeu: “minha filha é uma poetisa erótica”. Meu pai achava graça no piche que havia na placa de entrada da Faculdade de Letras: “e palavras”. No dia em que eu e ele fomos fazer minha inscrição na Ilha do Fundão, no início de 2001, quando abri a pasta de documentos na secretaria, eles haviam sumido. Minha identidade, meu CPF, o histórico escolar, escaparam da pasta por uma fresta, e não sei qual foi o milagre que nos fez encontrar todos os documentos na grama, pelo caminho. Meu pai chorou.

Ele morreu no dia 13 de julho de 2016, às três e meia da tarde. Outro dia achei uma anotação que fiz em novembro de 2015, poucos meses depois de termos descoberto o câncer do papai. O câncer do papai é quase obsceno, mas vou deixar. Àquela altura, ele envelhecia muito rápido. Seu bigode grisalho estava quase branco. “Sempre me comovo com a imagem do meu pai, embora, talvez, ele nem saiba disso”, eu escrevi há sete anos. “Meu pai está mais velho. Mais magro, mais velho. Hoje olhei para seu rosto e vi duas pequenas bolsas crescendo abaixo dos olhos. As pernas magras do meu pai me comovem profundamente. Acho tão engraçado quando ele usa meia soquete branca com sapato. Ele me lembra uma criança”. E aí contei um sonho. “Nesta semana, sonhei que havia morrido e meu sentimento era de muita pena pelas coisas que eu gostaria de ter feito e não fiz. No sonho eu não sei como morri. Isso não importava. Era como se a morte fosse a mais natural das nossas ações. A menos dolorosa. De um momento para o outro, eu sabia que estava morta. Não houve violência, não houve dor. A morte foi a continuidade de uma ação perpétua. A dor veio depois da morte. Era como se eu conversasse comigo mesma, e me dissesse da pena de ter morrido sem ter feito tantas coisas que tinha vontade”. 

Desde que soubemos do câncer até sua morte, meu pai viveu dez meses. Durante a doença, tive a ilusão de que ele poderia se tornar menos tenso e controlador. Mas isso não aconteceu. Ele não queria morrer de jeito nenhum, e ficou puto de ter ido tão cedo. Em 2018, era setembro ou outubro, eu morava em Paris por causa da bolsa sanduíche, no quarto 410 da Maison do Brasil, e sonhei com meu pai. Ele aparecia com os cabelos maiores, uma mecha branca que começava na testa. Passei a mão sobre sua cabeça e comentei que seus cabelos estavam compridos, e eu gostava daquele visual. Ele respondeu, com uma expressão meio contrariada, “é, aqui eles não ligam para essas coisas”. Fiquei com a sensação de que meu pai estava um pouco mais conformado com a morte. Um anjo da guarda o acompanhava, um homem jovem com feições indígenas vestido com uma roupa toda preta, um conjunto esportivo.

Estive junto do meu pai nas suas últimas horas de vida. Ele não morreu em casa, como morriam os reis em seus palácios. Bem que ele teria gostado. Bem que ele merecia, mas morreu num leito duro, na baia de uma emergência. No dia da sua morte, eu e minha mãe chegamos ao Rio de Janeiro às seis da manhã, e fomos para o hospital Copa D’Or. Eu vestia um macacão longo e folgado de jérsei colorido sobre fundo preto e o casaco esporte branco e verde da Puma que era do papai, e que herdei. Lembro dele de fralda, muito magro, e da expressão de dor em seu rosto, de desespero, num ímpeto de lucidez, ao ver entrar na baia o médico que o tratava. Estávamos eu, mamãe e um dos meus irmãos. O doutor pediu para falar conosco em particular e nos disse que não havia mais nada a fazer, como se isso já não fosse óbvio o bastante. Lembro do papai ter falado “Carol”. Ele teve alguns lampejos de consciência, mas na maior parte do tempo estava inconsciente. Ou de dor, ou de morfina.

Houve um momento em que saí e quando voltei ele estava banhado de suor. Foi uma cena terrível. Papai de fralda, todo suado, inconsciente e, ao mesmo tempo, gemendo de dor. De repente, como um anjo, uma das minhas melhores amigas apareceu. Ela é pediatra e conhecia o médico que estava no comando da emergência. Estávamos eu, mamãe, o meu irmão e essa amiga ao redor do leito. Eu e meu irmão segurávamos, cada um, uma mão do papai, e a mamãe estava a seus pés. Minha amiga, mais afastada, observava. Todos nós chorávamos porque sabíamos que o fim se aproximava. Ele sofria horrivelmente. O chefe da emergência aumentou a dose de morfina e, logo depois, meu pai morreu. Demoramos uns segundos para entender o que havia acontecido. Chamamos alguém, uma enfermeira entrou e nos confirmou sua morte. Em seguida, passei pelo saguão do hospital, abracei algumas pessoas, e fui à casa dos meus pais, em Copacabana, buscar documentos e um traje para vesti-lo. No caminho, cruzei com uma aluna. Ela me olhou e perguntou se estava tudo bem. Eu respondi “meu pai acabou de morrer”, e chorei. Em casa, escolhi uma camisa de linho que eu lhe dera de presente no Natal de 2013. Ela era listrada em dois tons de azul, um claro e outro escuro. Calça e sapatos pretos. Mas não sei se essa foi de fato a roupa que, por fim, ele foi cremado.

Quando voltei para o hospital, meu marido estava lá. Eu quis vestir o meu pai, e ele foi comigo. O corpo do papai estava na mesma baia, coberto, uma faixa branca envolvia sua cabeça, do topo ao maxilar, prendendo a boca. Suas mãos e pés estavam amarrados. Foi uma cena comovente. Eu, meu marido e uma enfermeira que nos ajudou, chorávamos, emocionados. É difícil vestir um cadáver. É impressionante a velocidade com que o corpo enrijece. Eu levei até cuecas e meias, e colocamos todas as peças, uma a uma, com dificuldade. Parecia que ele já tinha diminuído. Tive vontade de pegá-lo no colo e levá-lo para casa. Meu pai dizia que empalharia nosso cachorro depois que o bicho morresse. E foi essa a minha vontade com seu corpo. Eu queria levá-lo para casa e conservá-lo. Alguns meses depois da sua morte, li que em algumas sociedades, durante o período de luto, as viúvas cozinham o arroz com a água liberada pelos cadáveres dos maridos, e isso fez todo sentido para mim. Simplesmente, ele parecia frágil como um recém-nascido. Mas, ao invés de poder cuidar dele, de cobri-lo e alimentá-lo, nós o vestíamos para a morte.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Lua cheia em Virgem

Cogumelos comestíveis


Uma vez, há quase dez anos, tive uma viagem alucinante de cogumelo. Foi um lance terapêutico. Eu estava na Holanda, comi em casa, deitada na cama, um edredom me cobria. A que visões a viagem me levaria? As revelações têm a função de nos libertar – se a pessoa tiver, é claro, como você gosta de dizer, ancoragem emocional para isso. As revelações têm a função de nos libertar de nós mesmos, de nos livrar das torções que fazemos ao longo da vida, de modo a caber. Como se a gente fosse a vela de um filtro de barro e alguém nos limpasse. Tirasse o lodo. Foi assim que me senti depois da viagem de cogumelo. De início, tive medo e resisti. Na eletricidade, resistência é o dispositivo que se coloca num circuito para criar dificuldade à passagem da corrente elétrica, gerando calor. Tentei controlar a viagem, direcionar meus pensamentos. Só que chega uma hora, a coisa acontece. Primeiro, eu era uma mulher pendurada de cabeça para baixo num poço. Me erguiam e me afundavam num barril de água, num lugar alto e comprido que parecia o fundo do poço. Que merda, acho que pensei. Não comi cogumelo para me torturar. A cena seguinte foi mais aprazível. Eu estava no apartamento da Mariinha, minha avó materna, na Urca, no Rio de Janeiro. A casa vazia, era a luz das três da tarde, raios em diagonal atravessavam a poeira. Andei pelo quarto da frente (onde as crianças costumavam ficar porque tinha a televisão), pela sala, pela cozinha. Vi um hamster dentro de uma gaiola e, lá dentro, um círculo onde ele corria sem sair do lugar. Minha mãe disse que teve um hamster quando era adolescente. Eu vi memórias que não são minhas.

Da janela da cozinha
olhei para o vão interno
do prédio. E de repente
eu estava no espaço
sideral.
E o que senti foi um grande
alívio, seguido de
amor universal.
Jorrava amor do meu peito
e não era sexual.

Saí dessa viagem com um mantra: eu só quero estar presente. Compreendi com o corpo, e até o fundo da alma, com todos os poros da pele, que a vida é um presente. E a palavra “presente” em língua brasileira é o tempo verbal do agora e o substantivo do que se dá a alguém para agradar. Saí dessa viagem dizendo que sou uma sacerdotisa da vida, que estou a serviço da vida. A vida se realiza por meio de nós. A vida é o presente que todos os seres vivos no planeta Terra ganham. E, em troca, devemos agradecer, reconhecendo o que recebemos, retribuindo à vida, a própria vida. Agradecer é, por exemplo, lutar para que pessoas não passem fome. Os seres vivos zelam por suas espécies. As pessoas, na nossa sociedade, predam umas às outras, ao deixar seu semelhante sentir fome. “Semelhante” não é um indicativo de classe, é um indicativo de espécie. Se a alquimia é a química oculta, a vida oculta, qual seria? A alquimia da vida são as vísceras. E é preciso saber cultivá-las.

No último podcast lançado pela Casa de Minerva, a Renata Dias falou sobre a Lua cheia em Virgem. E terminou assim: “que a gente saiba o que fazer com a preciosidade que é estar vivo. Isso é precioso. A gente precisa agradecer a isso todos os dias. Não é uma bobagem, é um presente”. 


segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Lua cheia em Câncer

Rio São Francisco

com o ranço informulado
dos segredos
Ana Martins Marques

Nasci no edifício Caiaque, em Maceió. Há pouco tempo, eu e minha mãe estivemos diante dele. Fica na Praia da Pajuçara. Foi no primeiro dia da nossa viagem, logo depois de ela finalmente achar o prédio, que minha mãe contou que quando eu tinha três meses meu pai me levou para o Rio de Janeiro para me mostrar para os avôs, que ainda não me conheciam. Com isso entendi uma fotografia que mostra eu e meu pai em outubro de 1983. Como nasci em agosto, deve ter sido nessa viagem que ele fez esse retrato comigo sentada nos ombros dele, com um vestidinho vermelho. Só que eu era um bebê de três meses. A foto é até um pouco estranha, porque todo mundo vê que a criança era pequena para estar ali. Meu rosto está tapado pela cabeça do meu pai, a não ser meus olhos. Vivos, atentos, confiantes, sem medo. Muitos anos depois, eu e você escolhemos essa fotografia para ser emoldurada ao lado de outra, uma sua, com seu pai. Você bebê de um ano, grande, rosado, forte. Símbolo de nossa união, até hoje não tivemos coragem de quebrar o vidro desse quadro.

“Esse lugar é muito inspirador”, minha mãe acabou de dizer. Ela é uma mulher bonita de 63 anos. Estamos na Praia do Marceneiro, em São Miguel dos Milagres, e eu acabei de ler o poema “Acidente”, da Ana Martins Marques, em voz alta. Três meninas carregam um colchão inflável para o mar. Vamos aproveitar que a água é mansa e quente. Sinto sua falta. É tão bonita essa expressão, você não acha? Sentir a presença de alguém na nossa vida como sinto, agora, o vento que toca o meu corpo na praia. Toca e vai embora, toca e voa. E deixa um registro de prazer. Pegadas, pegadas, pegadas, pegadas, mas esses não são seus pés. Construo imagens de ausência para sentir você mais próximo. Levo de Alagoas a bunda de fora, dois fósseis de coral, uma porção de palavras: vento, jangada, palmeira, brisa, lua, vela, chamego. É a bolina que estabiliza a jangada. O nome da corda é mura.

No trajeto de Maceió a Paulo Afonso, a Lua está crescente e me acompanha. A vida acontece. Emocionante foi quando ouvimos a história, contada por Léa, do marido da filha da Cema, que cortou os cabelos no enterro da esposa. A Cema é tecelã em Malhada Grande. Ficou viúva e perdeu uma filha em poucos dias. A moça, que deixa duas filhas, morreu num acidente de carro quando voltava da Bahia para São Paulo, depois de enterrado o pai. Morreu em Minas Gerais. A filha da Cema estava com problema de queda de cabelo, e o marido deixava o dele crescer para que realizassem um implante na mulher. No cemitério, ele cortou o cabelo diante de todos, e jogou os fios no túmulo da moça. Os lajedos de Malhada Grande, a praia de Rodelas, as águas de Paulo Afonso. O rio São Francisco, a rua Londres.

E na Praia de Surubabel, a água é clara e quente, verde da cor dos seus olhos. “Os óio da cobra é verde” e eu sempre reparei. Nadei debaixo d’água de olho aberto, com medo e feliz. A serra no fundo, as serras, um feitiço, encantamento. Nossa pele dourada, os pelos dourados nos braços e nas frontes. As dunas não guardam segredos, elas os engolem. Cabras quase comem na minha mão. Eu toco o seu corpo com fluidez e prazer, e o seu também, e os nossos. Gozei algumas vezes. Nadamos nus e livres nas águas doces e pesadas do rio. Me senti atraída pelo fundo. Abro os olhos debaixo d’água e parece que estou voando. As corujas ficam vidradas com a luz do farol. Conflitos, carne de bode, baronesa, fogueira. E, enquanto isso, a cachoeira espera a hora certa de dar o bote. Do “lodo fértil das paragens”, ferrão profundo de vida e realidade.