segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Lua cheia em Câncer

Rio São Francisco

com o ranço informulado
dos segredos
Ana Martins Marques

Nasci no edifício Caiaque, em Maceió. Há pouco tempo, eu e minha mãe estivemos diante dele. Fica na Praia da Pajuçara. Foi no primeiro dia da nossa viagem, logo depois de ela finalmente achar o prédio, que minha mãe contou que quando eu tinha três meses meu pai me levou para o Rio de Janeiro para me mostrar para os avôs, que ainda não me conheciam. Com isso entendi uma fotografia que mostra eu e meu pai em outubro de 1983. Como nasci em agosto, deve ter sido nessa viagem que ele fez esse retrato comigo sentada nos ombros dele, com um vestidinho vermelho. Só que eu era um bebê de três meses. A foto é até um pouco estranha, porque todo mundo vê que a criança era pequena para estar ali. Meu rosto está tapado pela cabeça do meu pai, a não ser meus olhos. Vivos, atentos, confiantes, sem medo. Muitos anos depois, eu e você escolhemos essa fotografia para ser emoldurada ao lado de outra, uma sua, com seu pai. Você bebê de um ano, grande, rosado, forte. Símbolo de nossa união, até hoje não tivemos coragem de quebrar o vidro desse quadro.

“Esse lugar é muito inspirador”, minha mãe acabou de dizer. Ela é uma mulher bonita de 63 anos. Estamos na Praia do Marceneiro, em São Miguel dos Milagres, e eu acabei de ler o poema “Acidente”, da Ana Martins Marques, em voz alta. Três meninas carregam um colchão inflável para o mar. Vamos aproveitar que a água é mansa e quente. Sinto sua falta. É tão bonita essa expressão, você não acha? Sentir a presença de alguém na nossa vida como sinto, agora, o vento que toca o meu corpo na praia. Toca e vai embora, toca e voa. E deixa um registro de prazer. Pegadas, pegadas, pegadas, pegadas, mas esses não são seus pés. Construo imagens de ausência para sentir você mais próximo. Levo de Alagoas a bunda de fora, dois fósseis de coral, uma porção de palavras: vento, jangada, palmeira, brisa, lua, vela, chamego. É a bolina que estabiliza a jangada. O nome da corda é mura.

No trajeto de Maceió a Paulo Afonso, a Lua está crescente e me acompanha. A vida acontece. Emocionante foi quando ouvimos a história, contada por Léa, do marido da filha da Cema, que cortou os cabelos no enterro da esposa. A Cema é tecelã em Malhada Grande. Ficou viúva e perdeu uma filha em poucos dias. A moça, que deixa duas filhas, morreu num acidente de carro quando voltava da Bahia para São Paulo, depois de enterrado o pai. Morreu em Minas Gerais. A filha da Cema estava com problema de queda de cabelo, e o marido deixava o dele crescer para que realizassem um implante na mulher. No cemitério, ele cortou o cabelo diante de todos, e jogou os fios no túmulo da moça. Os lajedos de Malhada Grande, a praia de Rodelas, as águas de Paulo Afonso. O rio São Francisco, a rua Londres.

E na Praia de Surubabel, a água é clara e quente, verde da cor dos seus olhos. “Os óio da cobra é verde” e eu sempre reparei. Nadei debaixo d’água de olho aberto, com medo e feliz. A serra no fundo, as serras, um feitiço, encantamento. Nossa pele dourada, os pelos dourados nos braços e nas frontes. As dunas não guardam segredos, elas os engolem. Cabras quase comem na minha mão. Eu toco o seu corpo com fluidez e prazer, e o seu também, e os nossos. Gozei algumas vezes. Nadamos nus e livres nas águas doces e pesadas do rio. Me senti atraída pelo fundo. Abro os olhos debaixo d’água e parece que estou voando. As corujas ficam vidradas com a luz do farol. Conflitos, carne de bode, baronesa, fogueira. E, enquanto isso, a cachoeira espera a hora certa de dar o bote. Do “lodo fértil das paragens”, ferrão profundo de vida e realidade.