quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

"O antipássaro"

Orides Fontela,
fotografia de Inês Guerreiro

No sábado passado o Chico nos convidou e fomos assistir à peça “O antipássaro” no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, em que o ator Nilton Bicudo, dirigido por Elias Andreato, encena a vida e a obra da poeta Orides Fontela. Paulista nascida em 21 de abril de 1940 em São João da Boa Vista, cidade na divisa com Minas Gerais, Orides morreu aos 58 anos. Eu já conhecia a poesia de Orides, mas não sabia quase nada de sua biografia. No palco, o cenário é econômico. Luzes azuladas dão o tom. Uma penteadeira, uma cadeira, um lenço pendurado, um copo d’água, uma vela acesa e um tapete vermelho, ao mesmo tempo sangue e passarela, onde o ator desfila a força, a beleza e a angústia da poesia de Orides.

Registro do espetáculo "O antipássaro" feito por mim

O espelho é personagem coadjuvante no monólogo, objeto para o qual a poeta e o ator constantemente se voltam. As luzes se acendem e desde o primeiro momento os poemas são encenados com intensidade. A princípio, senti estranheza ao ouvir o texto com tal vigor. As palavras são ditas como pedras que se chocam quando buscamos o fogo. Porém, à medida que a peça avança – o roteiro foi escrito a partir de poemas de Orides, suas entrevistas e relatos do ator – fica compreensível a escolha pela interpretação pujante. A mulher que emerge ali é lúcida, solitária, furiosa, passional. É emocionante estar diante de alguém que fez da escrita a sua vida. Não o ofício, mas a vida. Orides Fontela se submeteu à força da poesia e do escrever. Uma pessoa com temperamento extravagante, por vezes perturbado, mas de extrema lucidez e coragem. Enquanto a peça transcorria eu pensei “ela foi uma sacerdotisa da poesia”. Nos dias que se seguiram, reli seus poemas. Sua voz chega como um recado espiritual. De tão simples, é essencial: “Nunca amar/ o que não/ vibra// nunca crer/ no que não/ canta.”.

Nilton Bicudo na peça "O antipássaro"

O figurino da peça tem um conceito interessante. Nilton Bicudo veste saia preta sobre calça de risca de giz e camisa de flanela vermelha sobre camiseta preta. Como adereço, um singelo colar com uma cruz de madeira. É necessário tencionar a dicotomia masculino-feminino, já que se trata de um homem encenando uma mulher (e Nilton vai e volta nos personagens em cena, é Orides quem fala a maior parte do tempo, mas ele também aparece quando nos conta sobre sua relação com a poeta). É boa, então, a ideia de sobrepor a saia à calça, uma peça unívoca sobre uma forma bifurcada, misturando trajes secularmente associados aos gêneros feminino e masculino. Mas a camisa de flanela vermelha me pareceu gratuita e a saia muito moderna. O conceito do figurino é bom, mas a realização, menos. No espetáculo fica evidente a pesquisa do ator e do diretor sobre os gestos, a voz e a maneira de falar, a materialidade da passagem de Orides pelo mundo. Justamente por isso, havia melhores opções para o figurino. Há fotos e vídeos de Orides Fontela e numa dessas aparições lá está ela com uma camisa de manga comprida de veludo preto com os punhos ajustados. Vale a pena ver “O antipássaro”, em cartaz até 3 de março, e conhecer a poesia de Orides Fontela.