domingo, 23 de agosto de 2009

O dia amanhece escuro e cinza

O dia amanhece escuro e cinza.
Gostaria de escrever com a certeza das palavras.
O dia ainda não veio porém esperamos por ele
está escuro e cinza.
As sombras da sala encobrem de penumbra os corpos.
O verde é tão mais verde neste dia
escuro
uma luz escura.
Pronto: chove.
A natureza conversa com o poema
e o poema responde.
O dia amanhece quente e cinza
clareado por gotículas cristais.
São milhares de momentos separados
absolutamente iluminados
resplandece a chuva
verão.


2006/2007

Dom João VI

Passeio pelas ruas da cidade atônita,
vendo os prédios caírem aos meus pés.
Não são prédios são os pés
do mundo que esmagam nossas cabeças.
Mas como é bonito o teatro municipal.
Não canso de me espantar.
Muitas pessoas falam sozinhas enquanto passeiam nas ruas.
O mundo está salvo
os loucos existem
e as árvores também.
A janela do ônibus enquadra a quina de um prédio,
a borda de outro e uma árvore.
Sozinha escrevo melhor porque dói mais.
A igreja continua em obras.
Há duzentos anos veio aqui um homem e disse: civilização.
E assim nós existimos tristes por essas ruas falsificadas.
Não basta termos pés e prédios
não é suficiente.
O importante é estarmos sós
para poder
muito
escrever.


2006/2007

sábado, 8 de agosto de 2009

Sábado

Aquela hora silenciosa do sábado,
quando o dia torna a esquentar para então definitivamente resfriar-se de novo,
são instantes de algum silêncio morno
em que aguardamos o próximo passo do mundo.
O que acontecerá, agora?
Um sábado qualquer,
que são todos os sábados,
sabe dizer o que acontecerá.
É o sábado que se desdobra em sábado que se desdobra em sábado.
São todos os sábados.
Aquela hora silenciosa do sábado,
e já então não mais aquela hora,
mas outra
mas ainda o mesmo sábado
e já outro.
Porque amanhã, pretenso domingo, será sábado
como ontem também o foi.
E de todos os instantes mornos do sábado
sei aquele que mais dói.
É aquela hora silenciosa do sábado, quando o dia torna a esquentar para então definitivamente resfriar-se de novo.


2007

Hospital da Lagoa

O homem que quase perdeu a perna estava no Hospital da Lagoa.
Uma mulher, que não era a sua, estava ao seu lado.
Outro homem, este sim, este perdeu a perna,
era o marido da mulher, e ele sentia ciúmes.
O homem que quase perdeu a perna ganha a vida cortando cabelo. É barbeiro.
Do outro, nada se sabe.
Apenas que sentiu ciúmes de sua mulher quando esta ajudava outro homem,
o que quase perdeu a perna.
Eu, de longe (talvez nem tanto), observo o Hospital da Lagoa.
Nunca entrei no prédio, mas você me ensinou o que é um brise soleil nas armaduras
do Hospital da Lagoa. Você me disse
“são essas paredes móveis, que buscam a melhor posição do sol, a melhor tragada do vento”.
O que um homem que perde a perna e tem ciúmes de sua mulher, sente?
E o que um homem que quase perde a perna sente?
E, sim, o que esta mulher sentiu, quando seu homem perdeu a perna e desejou
– a perna, a mulher.
Era capaz de ainda amar a mulher quando viu a perna indo embora.
Não queria perdê-la.

2009