quarta-feira, 18 de maio de 2022

Lua cheia em Escorpião


Me desculpe se um dia lhe causei algum mal.
Os pratos ainda estão na mesa, mas você já está fora de perigo. As coisas acontecem
de uma hora pra outra. Em tal território rubro e negro, a fonte da vida é abissal.
A porta da geladeira revela toda a intensidade da minha intimidade, requer
menos força ao fechá-la. (Trovão.) Há mais de mil pessoas dentro de mim,
sinto dores que não são minhas, e vivo mais uma sexta-feira sozinha. Você
é um conjunto de cenas fortuitas e duas conversas, além de uma foto que roubei
da internet. Não sou capaz de saber se escrevo prosa ou poesia. Sei que é necessário
escrever. Depósito de coisas inúteis.

O sintoma dói na carne. Marte na água é o fazer das sutilezas. Seja mais suave
com seu corpo, acabei de sentir alguém me dizer. A agulha de metal que pica
a veia é o túnel por onde entra um tubo fino de material maleável, e é esse tubinho
afiado e leitoso que fica dentro da nossa carne. Depois de tirado o acesso, como dizem
no hospital, o tubo fino pingando sangue lembra o dente perigoso de uma criatura
faminta. Poderia ser o dente do meu sintoma. Digo meu, mas por ele não tenho apego.
Apenas me tornei mais consciente da sua força, e da minha. Dois corpos duros
e uma chacoalhada de mãos ao sair.

Quando estava no hospital, fui despertada às seis da manhã pela lembrança
do abacaxi que eu comprara na feira. Os vizinhos vivem comendo pipoca
e a única coisa que eu peço é que você faça pipoca pra mim. Não é todo dia
que se ama alguém de pele lápis-lazúli. O tempo passa ferozmente.
Nos conhecemos desde o século X, vai-las lavar alva. Você é um estranho
e vive debaixo d’água. Sob a luz de Mar del Plata, é da tragédia o seu território.
Quando eu era pequena e ia à praia, adorava brincar que minha casa
era dentro do mar. Talvez eu já estivesse à sua espera.

Tristemente, caminho com os pés na areia da praia de Copacabana.
Às sextas, meu avô gostava de pedir pizza do Caravelle, a massa alta e fofa,
um pouco aerada. O dia foi todo cinza e chuvoso, mas isso não é um problema.
Fui convocada, não posso abrir mão de mim. Que grande liberdade amar
as fragilidades de alguém. Vou comer o purê de batata roxa, que tem a cor mais linda
do mundo. Queria que o universo fosse dessa cor, eu disse. Você é dessa cor,
foi sua resposta. Aguardo sua mensagem, a mais despretensiosa. Oi, tudo bem,
tem se alimentado direitinho? Apenas uma forma de contato que não seja sutil
como nossos pensamentos.

Abro o livro
As impurezas do branco e lá está uma flor seca, guardada não sei quando.
Tenho o hábito de me mandar mensagens de outros tempos. Guardo flores
de dias especiais dentro de livros, perco fotos, esqueço cartões, tudo dentro de livro.
Me escrevo bilhetes que são lidos anos depois. Encontrei anotações em que reproduzo
um dos nossos diálogos. (Com você, aprendo a amar em silêncio, vai-las lavar alva.)
Pedimos uma dose de cachaça para os dois e bebemos devagar, encostados
cada um de um lado da porta grande e antiga do bar. Todo dia, antes de dormir,
penso em você, eu falei. Desde quando, você perguntou.

O prédio da Central
é do tamanho
do meu desejo
Avanço sobre o asfalto
dentro do carro
na minha direção
O meu desejo por você
faz eu me aproximar
de mim

Faço compras e odeio como qualquer outra pessoa. Queria escrever um livro
de autoajuda, mas só consigo pensar num livro de péssima-ajuda, embora acredite
que algumas práticas nos trazem bem-estar e conforto à existência, todas elas
mínimas, insignificantes, ridículas e até escatológicas. Por exemplo, não me obrigo
a tomar banho e escovar os dentes. Para mim, ver os potes de vidro organizados
é uma mensagem de otimismo. Campo magnético, esse é o título do seu primeiro
livro. Estranhamente, me sinto amada. Toda matéria, mesmo aquela não alcançada
por nossa sensibilidade, é ativa. Nem toda matéria é visível. Em épocas remotas,
o campo magnético foi enormemente mais intenso e constante, o tempo suficiente
para incubar vida.

Hoje, enquanto falava sozinha no banho, lembrei que gostávamos de conversar
no chuveiro. Tenho vontade de gritar, tenho vontade de socar os ladrilhos azuis
do boxe. De escovar os dentes até sangrar a gengiva. Hoje, no banho, imaginei
o teto caindo sobre a minha cabeça. Uma música triste desenhava os contornos
daquela casa. O som da música desfia veneno, daqueles que imobilizam
enquanto o mundo não deixa de acontecer. Tudo bem eu ser do jeito que eu sou.
Por quê, às vezes me pergunto, apesar de saber que temos razão. Pego o copo
com as duas mãos e não deixo cair. Os pratos ainda estão na mesa, mas você
já está fora de perigo.

Não é o meu corpo que você manipula. Uso óleo de gergelim, fico com cheiro de grão.
A pele é uma boca enorme. Acordei com a perna dormente, em cima da sua.
Tomei um café coado chamado Baby Flower e peguei o ônibus embriagada,
na avenida Primeiro de Março. Gostaria de dedicar minha vida a combater a pobreza,
material e de espírito. A culpa é um investimento do ego. Todos os sentimentos são
investimentos do ego. O que a vida quer de mim? Qual o chamado da minha alma?
Chove torrencialmente. Eu quero intuição, eu quero calma, eu quero força de vontade,
eu quero lucidez, eu quero discernimento, eu quero paz, eu quero amor no coração.

Sempre gostei de procurar palavras no dicionário. Quando criança, tinha o hábito
de levar café na cama para meus pais. Esquentava o leite da minha mãe
no micro-ondas, já misturado com o achocolatado sem açúcar que ela gostava.
A beleza das flores é indiferente à senhora que passa do outro lado da rua,
empurrada numa cadeira de rodas. Sinto beleza na dor, você me fez escrever.
A palavra é uma roupa, eu disse ao final do nosso passeio. Por duas vezes
fui à praia sozinha. No primeiro dia de viagem, estava frio e ventava, a paisagem
era linda e decadente. No outro dia, à noite. A sensação do futuro rompendo
o presente.

São seis e meia da tarde e parece que o mundo marca três mil e setecentas horas
da noite. Gosto quando venta. Não adianta falar aqui do desejo de estar com você,
do tesão. E mais ainda: da curiosidade. Na alta madrugada assumo a vontade
que eu sinto de engolir um homem. Sabe-se lá os porquês das nossas vidas
em conjunto, se é que ele existe. Estou diante da cratera que me constitui e desejo
todos os poros do seu ser. Gosto de roçar minha língua nos seus pelos.
Por que escrever poemas sentimentais em que se fala do amor e do vazio? 

Os pratos ainda estão na mesa, mas você já está fora de perigo. Eu faço e trago
a sua língua junto da minha. São seis e meia da tarde, talvez valha a pena esperar.
O amor da minha vida agora. Fui dormir com os pés da sua casa, madeira que deseja.
Agora só quero estar com você, falar e beijar ao mesmo tempo. A cama nos chãos
de madeira que me chamam. Desenhos e fotos e tudo o mais enquanto cabe
um dedo seu. Parece que foi ontem, e foi, que o mundo guardava um segredo.
Você é tudo o que existe soterrado em mim, vulcão o nosso corpo.