Salpicão
Salpicão é comida de vó.
...
"Compage, macedônia, amálgama, baralhada, fusão, transfusão, matrimônio, salada, salpicada, salsada, salgalhada, tutilimúndi, choldraboldra, junção." Dicionário analógico da língua portuguesa, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. (Todo mundo é capaz de escrever bem, ricamente e com classe se tiver esse dicionário.)
...
Horário de saída das escolas, as ruas salpicadas de crianças. Uma menina loura e magra amassa o nariz da professora, ao lado de um cachorro pastor alemão; e um menino preto e magro chora, mãos dadas com a professora. Sempre uma professora. Para aqueles que estudam à tarde meio-dia é quando o dia começa. Bainho tomado, cabelo puxado pra trás, barriga cheia. As ruas salpicadas de uniformes. Escola Municipal Benevenuta Ribeiro, São Bento, Tancredo Neves, Escola Municipal Orsina da Fonseca e Pedro II. Notre Dame, Franco Brasileiro. CIEP Bento Rubião. Colibri. Escola Municipal Tia Ciata e Colégio Rio de Janeiro. Enquanto uns saem outros chegam, e a vida acontece. O trabalho, o almoço, o susto. Descobri que ao lado da igreja Santa Margarida Maria acontece uma feira toda quarta. Boa estreia para meus óculos novos.
...
Salpicão também é a casa do Ferreira. Um apartamento em Copacabana, penumbroso, em que tudo é milimetricamente desarrumado. Cada casca de lápis, cada livro e parede. Móbiles. O frango a cenoura a maionese o presunto. Tudo, na casa com Ferreira. Susto de novo, e ainda bem. Entrar naquela casa é mergulhar numa outra dimensão, "numa outra (maior) realidade" (Drummond). Não tem cheiro, não tem som, só tem espaço. Só tem objetos. Só tem cores e planos e alguma luz melodramática. A casa é iluminada por seus objetos. A concretização natural do claro/escuro. A casa de Ferreira é um espaço sideral. E isso me faz lembrar um poema dele que é exatamente como sua casa:
"Pergunta e resposta
Se é fato que
toda massa do sistema
solar (somando a de Saturno e Marte
e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio
e Plutão, mais
os satélites, mais
os asteróides, mais) equivale
apenas a 2% da massa
total do Sol e
que o Sol não é mais
que um mínimo ponto
de luz na estonteante tessitura
de gás e poeira da Via
Láctea e que a Via
Láctea é apenas uma
entre bilhões de galáxias
que à velocidade de 300 mil km por segundo
voam e explodem
na noite
então pergunto:
o que faz aí
meu poema com seu
inaudível ruído?
E respondo:
Inaudível
para quem esteja
na galáxia NGC 5128
ou na constelação
de Virgo ou mesmo
em Ganimedes
onde felizmente não estás,
Cláudia Ahimsa,
poeta e musa do planeta Terra."
Ferreira Gullar, Muitas vozes
Abaixo, Na casa, com Ferreira. Foto de Tomás Rangel.
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"Compage, macedônia, amálgama, baralhada, fusão, transfusão, matrimônio, salada, salpicada, salsada, salgalhada, tutilimúndi, choldraboldra, junção." Dicionário analógico da língua portuguesa, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. (Todo mundo é capaz de escrever bem, ricamente e com classe se tiver esse dicionário.)
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Horário de saída das escolas, as ruas salpicadas de crianças. Uma menina loura e magra amassa o nariz da professora, ao lado de um cachorro pastor alemão; e um menino preto e magro chora, mãos dadas com a professora. Sempre uma professora. Para aqueles que estudam à tarde meio-dia é quando o dia começa. Bainho tomado, cabelo puxado pra trás, barriga cheia. As ruas salpicadas de uniformes. Escola Municipal Benevenuta Ribeiro, São Bento, Tancredo Neves, Escola Municipal Orsina da Fonseca e Pedro II. Notre Dame, Franco Brasileiro. CIEP Bento Rubião. Colibri. Escola Municipal Tia Ciata e Colégio Rio de Janeiro. Enquanto uns saem outros chegam, e a vida acontece. O trabalho, o almoço, o susto. Descobri que ao lado da igreja Santa Margarida Maria acontece uma feira toda quarta. Boa estreia para meus óculos novos.
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Salpicão também é a casa do Ferreira. Um apartamento em Copacabana, penumbroso, em que tudo é milimetricamente desarrumado. Cada casca de lápis, cada livro e parede. Móbiles. O frango a cenoura a maionese o presunto. Tudo, na casa com Ferreira. Susto de novo, e ainda bem. Entrar naquela casa é mergulhar numa outra dimensão, "numa outra (maior) realidade" (Drummond). Não tem cheiro, não tem som, só tem espaço. Só tem objetos. Só tem cores e planos e alguma luz melodramática. A casa é iluminada por seus objetos. A concretização natural do claro/escuro. A casa de Ferreira é um espaço sideral. E isso me faz lembrar um poema dele que é exatamente como sua casa:
"Pergunta e resposta
Se é fato que
toda massa do sistema
solar (somando a de Saturno e Marte
e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio
e Plutão, mais
os satélites, mais
os asteróides, mais) equivale
apenas a 2% da massa
total do Sol e
que o Sol não é mais
que um mínimo ponto
de luz na estonteante tessitura
de gás e poeira da Via
Láctea e que a Via
Láctea é apenas uma
entre bilhões de galáxias
que à velocidade de 300 mil km por segundo
voam e explodem
na noite
então pergunto:
o que faz aí
meu poema com seu
inaudível ruído?
E respondo:
Inaudível
para quem esteja
na galáxia NGC 5128
ou na constelação
de Virgo ou mesmo
em Ganimedes
onde felizmente não estás,
Cláudia Ahimsa,
poeta e musa do planeta Terra."
Ferreira Gullar, Muitas vozes
Abaixo, Na casa, com Ferreira. Foto de Tomás Rangel.